Receber o Prémio José Carlos Belchior é para mim uma surpresa, uma honra e um excelente pretexto para demonstrar a minha gratidão ao Colégio de São João de Brito, que frequentei dos 3 aos 18 anos entre 1976 e 1991.

Como tenho uma certa aversão à monotonia das soluções já feitas, vou evitar produzir o discurso formal, solene e sério que talvez esperassem de mim; prefiro partilhar convosco algumas das cenas da minha história neste espaço e naquele tempo, que forjaram a pessoa que hoje sou e me deram as ferramentas necessárias para construir um percurso que o júri deste Prémio, com muita generosidade, decidiu assinalar. Imaginem um formato híbrido, entre a história aos quadradinhos e um livro da “Anita”, cujo título poderia bem ser “Anita no Colégio de São João de Brito” (e aqui vai um piscar de olhos a todas as minhas amigas com quem eu devorava essa icónica colecção de livros infantis[1]); as personagens, para além de mim própria, serão muitos de vós que me estão a ler, e outros de que certamente se recordarão.

Na primeira vinheta, estamos na antiga Primária, e mais concretamente na sala da saudosa Professora Dalila. Os exercícios, de matemática ou outros, são realizados num silencioso ambiente de excitação; para além de obter o Muito Bom, Parabéns!, caligrafado pela professora a esferográfica vermelha, que indica termos tido tudo certo, é preciso correr para chegar em 1º lugar, ora eu, ora a Ana Rita Duarte (agora Bessa), ora o Rui Pedro Alves, ora o tristemente desaparecido Tiago Frescata: na verdade, “ter tudo certo”, ou dominar plenamente os conhecimentos propostos, é apenas a base a partir da qual há que inventar novos desafios e procurar sempre ir mais longe. Devo um infinito agradecimento à Dalila, por todas as sementes que plantou em mim, mas também a todos colegas com que me cruzei no Colégio, por me impelirem a correr, por correrem comigo, por se esforçarem tanto como eu e assim potenciarem o nosso crescimento comum.

No quadradinho seguinte, estamos na secretaria; em bicos dos pés, estico-me para chegar ao balcão e entregar o cheque da mensalidade; já sei que, independentemente das nossas limitações, há que assumir total responsabilidade por aquilo que nos diz respeito. Obrigada a todos os funcionários do Colégio, que me ajudaram a cumprir as minhas tarefas, com dedicação, zelo, benevolência, humor e muito carinho.

Um pouco mais tarde, no tempo e nesta imaginária banda desenhada, passo um intervalo do almoço, na Sala de Música, ao piano, ou estou a cantar ao fundo do corredor do ciclo, com a Rita Nunes da Ponte, a Margarida Moreira dos Santos e o José Carlos Miranda. Faço música pelo prazer da música, na companhia de amigos tão cúmplices e queridos… Adiante, estamos em casa do Perru (que ele não me leve a mal a familiaridade no trato!), onde me chamou um telefonema no dia dos meus anos. À chegada, uma festa surpresa improvisada, com a presença de vários colegas, muitos balões e uma adorável tartaruga que me deram de presente, revelaram à miúda tímida que eu era que os amigos se importavam genuinamente comigo. Obrigada a todos aqueles que me dedicaram parte do seu tempo; se a presença dos amigos é fundamental em qualquer momento da vida, ainda o era mais para mim, naquela altura e naquele contexto.

Mais à frente, nos laboratórios de química, com os Professores Ângela Canelhas e Ângelo Fernandes, e nas aulas de Matemática, com a Professora Dulce Dias, aprendo o valor do rigor absoluto e do método a ele associado. Não segui – como já sabem – um percurso profissional na área das ciências, mas aplico esses conhecimentos todos os dias. Obrigada a esses e a todos os outros professores com quem me cruzei no Colégio, por terem exigido de mim tudo o que havia para exigir, fazendo prova de competência sem qualquer complacência.

Na próxima vinheta, estamos no gabinete do então director, Pe Jorge Sena. Eu sou uma adolescente como qualquer outra e, no entanto, a minha voz é ouvida e tida em conta; ao falar das minhas preocupações, tentando ecoar também as dos meus colegas, percebo que a hierarquia não é cega nem surda, e se preocupa efectivamente com as perspectivas de todos, incluindo os mais novos. Obrigada aos directores que conheci no Colégio, sem esquecer naturalmente a figura ímpar que dá o nome a este prémio, o Pe José Carlos Belchior, por conduzirem os destinos da casa comum com sabedoria e sensibilidade.

Na última vinheta desta minha história incompleta, estamos no Estuário do Tejo, eu e mais uns tantos alunos, de vários anos, enlameados, sujos e cansados. Iniciado pelo Pe Carlos Azevedo Mendes, a quem nunca agradecerei o suficiente por esse projecto que estruturou a minha adolescência, o “grupo das aves” (também conhecido como “Ao encontro da Natureza” e, na fase final, “Sterna”) obstinou-se durante anos a organizar sessões semanais, saídas de campo regulares e uma panóplia de actividades que hoje qualificaríamos como “Educação para a sustentabilidade”. Com muita inocência, mas também com total seriedade, empenho e espírito de missão, ultrapassávamos todos os obstáculos (e não foram poucos!) para continuar a fazer a nossa parte em prol da conservação da natureza. Do ponto de vista pessoal, esses anos treinaram-me para o esforço desmedido (quantos quilómetros trilhados com uma mochila de 15kg às costas, muitas vezes às primeiras horas da madrugada, com frio e sob chuva, ou na tarde alentejana, com muito calor e um sol abrasador!), mas também para a responsabilidade, a organização, a autonomia e a certeza de que os limites que julgamos ter se redefinem a cada momento, em função da nossa vontade de os ultrapassar. Sobretudo, a experiência ensinou-me que o conta, na Vida, é a essência, e não a aparência das coisas… Ao mentor e a todos os meus colegas do “grupo das aves”, dizer obrigada não chega; é preciso que saibam que o que aprendi com eles, lado a lado, passo a passo, definiu a pessoa em que me tornei. É tão simples, e tão fundamental quanto isso…

Há trinta anos, exactamente, eu saía deste Colégio para o mundo, tendo feito uma escolha profissional que muitos então consideravam impensável; “um desperdício”, diziam (tinha tão boas notas em Ciências, por que razão haveria de seguir Música?). A minha escolha não era, naturalmente, a única, e talvez até fosse a mais improvável aos olhos de quem me conheceu no Colégio e ignorava que eu vinha conciliando desde há anos os estudos regulares e os estudos musicais, desenvolvidos noutros contextos, sem qualquer articulação de horários ou disciplinas. Mas era a escolha certa, e disso me dei conta na altura como todos os dias desde então.

Não deixei de fazer investigação nem carreira académica por causa disso; não deixei de praticar a biologia (minha outra grande paixão), em projectos que cruzam arte e ciência e que me têm dado imenso gosto. Não deixei de exercer um certo estilo de liderança para o qual, sem saber, o Colégio me preparou.

Perguntam talvez aqueles que me ouvem: “Está bem, mas se foi a escolha certa, porque não a ouvimos mais vezes na RTP2, na Mezzo ou na Gulbenkian, porque não a vemos nos grandes cartazes? Está claro que a sua notoriedade não se compara com a de uma Maria João Pires…” Decerto que não. Em primeiro lugar, porque Maria João Pires há só uma! Mas também porque as minhas escolhas foram sempre obstinadamente a contra-corrente: em primeiro lugar, o facto de eu ter sempre querido pensar e fazer Música simultaneamente, desafiando até ao limite do possível as minhas capacidades e resistência, e contrariando a visão (que hoje felizmente se vai esbatendo) de que, para reflectir, estão cá os musicólogos; os músicos, é só dar aos dedos… Ou, visto pelo prisma contrário, se pensa e escreve, então é porque não é bom músico! Em segundo lugar, porque sempre me tenho dedicado a repertórios menos conhecidos, particularmente do nosso tempo, dando voz a compositores vivos, muitos deles portugueses; ou seja, porque tenho escolhido defender música que ainda ninguém conhece (e de que, em consequência, ainda ninguém gosta) porque nunca foi tocada, ou melhor, “desbravada”, com todos os riscos que isso comporta. Depois porque, enquanto directora de uma das escolas, ou faculdades, da Universidade de Évora, tenho reclamado para as Artes um lugar na academia que reconheça o seu potencial enquanto agentes transformadores das pessoas e da sociedade, enquanto motores do pensamento crítico e da sensibilidade estética, enquanto alavancas da criatividade e respostas aos perigos da globalização. E por muitas outras razões, que não cabe aqui elencar em maior detalhe.

Quem se aventura por caminhos destes aprende, desde logo, a não esperar recompensa, para além da convicção de cumprir uma missão de valor e da satisfação de ser verdadeiro para consigo próprio. Por isso, que o júri do Prémio José Carlos Belchior tenha sabido e querido reconhecer o meu percurso (de que me orgulho, claro, mas sem pretensão), pondo-me ao lado de tantos e tão distintos antigos alunos que foram galardoados em anos anteriores, é mais do que eu alguma vez esperei receber. Agradeço à Associação dos Antigos Alunos, na pessoa do seu actual Presidente, Filipe Farelo, por me ter contemplado e, ao fazê-lo, por inscrever a Música e as Artes, de modo mais geral, no belíssimo palmarés do Prémio José Carlos Belchior.

Aceito esta distinção com gratidão, e encontro nela um estímulo para continuar a dar tudo por tudo, todos os dias, procurando ser mais e melhor em cada ocasião e contribuindo, à minha modesta maneira, para edificar o mundo em que acredito. Obrigada a todos.

 

Ana Telles

08/12/2021

[1] Da autoria de Gilbert Delahaye e Marcel Marlier.