A penetração portuguesa no Oriente caracterizou-se, principalmente, pela acção conjugada de mercadores e missionários. Ao abordarmos a presença lusitana na China, não podemos ignorar a acção dos missionários portugueses e estrangeiros ao serviço do padroado português do Oriente e que constituíram a guarda avançada da nossa expressão cultural e, sobretudo, um marco da presença da Europa e de Portugal no Império do Meio.

Com efeito, não foi por acaso que a primeira embaixada de celeste Império ao Ocidente foi a enviada a Portugal; que Macau permaneceu sob governação portuguesa, ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX; e que o único cemitério para estrangeiros, em Pequim, tenha ficado conhecido por Cha-la ou dos Portugueses, isto para além de em muitos outros episódios da história sino-portuguesa, o nosso país ter beneficiado de um tratamento favorecido comparativamente com o dado às potências europeias.

Efectivamente, muito da aceitação da presença portuguesa na China, ficou a dever-se à influência que os denominados missionários cinetistas tiveram na Corte de Pequim e nas preciosas informações que foram transmitindo do interior do Celeste Império, possibilitando à nossa diplomacia agir em conformidade com os usos e costumes chineses, facilitando, desta forma, o diálogo e compreensão mútua.

Constitui hoje uma curiosidade, o notável trabalho no domínio da matemática e da astronomia levado a efeito durante quase duzentos anos pelos Jesuítas em Pequim.

Remonta ao reinado do Imperador Wan Li (1573- 1620) a chegada a Pequim do Jesuíta italiano Matteo Ricci ou Li Mateou ou Xi Tai, significando esta última expressão “sábio do Ocidente”.
Matteo Ricci foi, efectivamente, a pedra angular em que assentou a filosofia de evangelização da China, caracterizada pela assimilação e profundo conhecimento da cultura Chinesa, por uma aproximação entre alguns princípios do Confucionismo e os ensinamentos do Cristianismo e, pela acção científica, especialmente, no domínio das ciências matemáticas e astronomia.

Existindo um profundo respeito pelos homens da cultura — os chineses colocam-nos no topo da escala social sob a designação de letrados — os jesuítas europeus lograram alcançar, através de brilhantes cientistas para ali enviados, os mais destacados lugares no Tribunal da Matemática, no Departamento de Astronomia e, nos Magistérios Científico e Artístico, com destaque para a regência do ensino da matemática e ciências da natureza.
Apercebendo-se do apreço em que a Astronomia era tida no Império do Meio e da paralisação em que se encontrava desde o séc. lll — época em que o Imperador Qinshi mandou destruir os livros científicos — Ricci entrou por esta porta, impressiona os Mandarins do paço com um relógio que construiu e, seguidamente, com um dos seus quadrantes solares, prismas e esferas metálicas.

Igreja de São José dos Portugueses em Pequim – Gravura do último quartel do séc XVIII. Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa

O primeiro português que intervém nesta área é António de Almeida SJ, companheiro de Ricci desde a primeira hora. Entretanto, a pedido de Ricci, chega a Pequim o grande astrónomo Padre Sabattino de Ursis, que apoiaria, decisivamente, a estratégia escolhida para a evangelização da China.
Um dos primeiros grandes sucessos destes sábios do Ocidente, foi a reforma do Calendário Chinês, levada a efeito pelo Alemão P. Adam Schall von Bell, em 1630, que estabeleceu a correcta relação entre o Calendário Lunar e o Calendário Solar. Na China o Calendário era publicado por um Conselho de Matemáticos e era submetido, anualmente, pelo respectivo presidente ao Imperador, o filho do Céu, de quem dependia a sua promulgação.

O conselho dos Matemáticos formava o chamado Tribunal da Matemática, cujo presidente era sempre uma figura eminente e respeitada. Departamento de Astronomia — Qin Tian Jian — dependente do Tribunal dos Ritos, constituía outro ponto chave da Ciência e Culturas chinesas.

O levantamento cartográfico do Império do Meio foi outro dos importantes trabalhos levados a efeito, obra gigantesca encomendada “aos sábios do Ocidente” em 1709 e terminada em 1718. Importa agora referir que a qualificação e prestígio dos Jesuítas europeus os colocou à frente do Departamento de Astronomia de 1645 a 1838. A partir de 1774 o cargo de presidente deste departamento foi sempre ocupado por jesuítas portugueses, sendo o primeiro Félix da Rocha e o último D. Caetano Pires e que muitos dos presidentes do Tribunal da Matemática foram, também, portugueses entre os quais Tomás Pereira, de 1688 a 1694, André Pereira, este como vice-presidente de 1728 a 17 42 e que asseguraram com brilhantismo a continuação do trabalho de Adam Shall e Ferdinand Verbiest.

Verbiest foi encarregado pelo Imperador Kangxi em 1674, de reformar o observatório astronómico de Pequim construindo todos os instrumentos entre os quais um Horizonte Azimutal, um globo celeste, numa esfera zodiacal, um sextante, tendo o Rei Luís XIV de França oferecido o Altazimute. Os já referidos André Pereira, Félix da Rocha e, ainda José Espinha alcançaram grande notoriedade no Departamento de Astronomia. O Eclipse do Sol ocorrido em Julho de 1730, consagrou o prestígio destes cientistas, cuja previsão suplantou em rigor a dos académicos chineses. O nível científico das previsões foi confirmado em 13 de Dezembro de 1731 por um pequeno eclipse da Lua e em 29 do mesmo mês um grande eclipse horizontal do Sol. André Pereira e Inácio Koegler foram então, encarregues de reformar os métodos de cálculo usados pela Academia Chinesa.

Um facto curioso é que os Jesuítas portugueses em Pequim, nunca perderam o contacto com o Mundo Exterior e, especialmente, com os principais centros da cultura europeia. Constata-se que mantiveram contactos regulares com o 5° Conde da Ericeira, Vice-Rei da Índia (1717 a 1720), enviando-lhe informações sobre a China e recebendo os mais recentes livros científicos franceses. Encomendaram as últimas publicações cientificas saídas na época em Itália, Holanda e Inglaterra e corresponderam-se com o Dr. Ribeiro Sanches, médico da Corte Russa, através de quem receberam as publicações da Academia Imperial de São Petersburgo. O Francês Antoine Gaubil escreveu de Pequim para Paris dizendo “Os padres portugueses têm uma biblioteca muito antiga, bem fornecida no que diz respeito à história, escritura, comentários, teologia, matemática, têm livros excelentes de medicina, cirurgia, livros latinos e franceses de história natural, física, astronomia e geometria, sei de fonte segura que os Portugueses decidiram suplantar-nos em tudo”. Charles Boxer refere que a menos que tenham sido, recentemente destruídos pelos guardas vermelhos, ainda se encontram em Pequim os livros científicos coleccionados ardentemente pelos jesuítas portugueses, entre os quais se podem encontrar o verdadeiro método de Verney, a obra de Isaac Newton, o Essay on Human Understanding de John Locke e muitas outras. O prestígio e a força deste escol de cientistas fica expresso num provérbio da índia Portuguesa do final do séc. XVII que garante que, “A ponta de uma pena de um jesuíta é mais temível que a ponta da espada de um árabe”.

Outro dos aspectos interessantes deste relacionamento cultural foi a introdução da pintura a óleo ao estilo europeu, referindo um investigador que durante o reinado de Qianlong (1736 – 1795) trabalhavam na Corte sete jesuítas como pintores, pertencentes às missões portuguesa e francesa. Estes pintores introduziram a noção de perspectiva, divulgaram a pintura do natural ou segundo um modelo e coube-lhes “imortalizar as vitórias imperiais, pintar acontecimentos célebres ou generais que se distinguiam na Guerra, decorar salas, produzir retratos e naturezas mortas”. No âmbito da pintura notabilizou-se Giuseppe Castiglione (1688- 1766), um Genovês que esteve quatro anos em Portugal de 1710 a 1714, como sucedia em regra com os estrangeiros que iam trabalhar nas missões do Padroado Português. Castiglione partiu para Pequim em 1715, onde viveu 51 anos, adoptou nome de Lang She Nin e esteve ao serviço de três Imperadores — Kangxi, Yougzeng e Qianlong. Deve-se também a estes europeus a introdução da gravura a cobre, feita com o recurso à prensa, pois até à data os chineses apenas produziam xilogravura.

A acção destes missionários era, porém, de vanguarda e o sincretismo entre alguns dos princípios fundamentais da cultura chinesa e o cristianismo, estiveram na origem da “questão dos ritos” que opôs a Santa Sé ao Padroado Português e em especial aos Jesuítas. Incompreendidos pela Santa Sé que proibiu os Ritos Chineses através do seu legado a Pequim, o Cardeal Meillard de Tournon em 1707 e proscritos pelo Édito do Tribunal dos Ritos de 1708 que bania da China os missionários que não os observassem, ficaram estes entre dois fogos.

Após a morte de Kangxi em 1723 e até 1773, data do breve “Dominus ac Redemptor” de Clemente XIV que extinguiu a Companhia de Jesus e que só foi conhecido na China ano seguinte, não voltaram os missionários a gozar do apoio que, através do édito da tolerância de 1692, lhes havia sido dado por aquele Imperador. Não conseguiram os missionários cientistas evangelizar a China, mas lograram lançar as sementes da religião que difundiam, através da divulgação da cultura e ciências europeias, da assimilação cultural dos usos, tradições e valores próprios de uma civilização milenar.

Cemitério de Cha-La ou dos Portugueses em Pequim. Atribuído aos Jesuítas portugueses por ordem do Imperador Wanli no ano de 1610, ali foram sepultados os grandes missionários da China, muito notabilizados como cientistas. este cemitério foi transformado, após a revolução cultural, no jardim escola de quadros do partido comunista no noroeste de Pequim.

Cemitério de Cha-La ou dos Portugueses em Pequim. Atribuído aos Jesuítas portugueses por ordem do Imperador Wanli no ano de 1610, ali foram sepultados os grandes missionários da China, muito notabilizados como cientistas.
este cemitério foi transformado, após a revolução cultural, no jardim escola de quadros do partido comunista no noroeste de Pequim.

Este colossal trabalho perde-se, entre outras, às mãos da intriga palaciana e da visão limitada da propaganda fide e da Inquisição no começo do séc. XVIII quando, na realidade, estes homens estavam em consonância com os princípios que seriam consagrados, duzentos anos mais tarde, pelo Concílio Vaticano II. O Vaticano em vez de apresentar desculpas à China deveria era honrar a memória daqueles que para maior glória de Deus, sacrificaram as vidas pelos ideais que difundiam. Para além dos milhares de documentos por investigar que jazem nos arquivos europeus e nos anais das dinastias Ming e Qing, restam destes sábios do ocidente os instrumentos de astronomia, os seus trabalhos científicos, literários e artísticos, a igreja Nan-Tan e as pedras tumulares do cemitério dos portugueses em Pequim, testemunhos silenciosos de uma página brilhante da História da Humanidade.

António Arez Romão @ Loyola #7