Que educação queremos para viver em sociedade?

É um título suficientemente genérico para dizer o que se quiser, mas suficientemente exigente por dispor de 20 minutos e me encontrar perante uma assembleia de excelência. Não vou falar das estruturas, da organização, da reforma curricular, dos aspectos administrativos da educação, onde não me sinto nada à vontade, até por ter sido professor do ensino secundário apenas durante dois anos e — imaginem — de 1968 a 1970, no Colégio das Caldinhas: 4 horas de Alemão, 3 de Filosofia, uma de música, além de ser responsável de 70 rapazes de 14/15 anos sempre que não estavam na sala de aula, num Colégio interno! Devo muito sim à faixa etária dos 18 aos 26, ao estudante da Universidade de Coimbra e não me canso de recordar o toque da cabra às 7:30 da madrugada, que ouvi durante 20 anos!

Aqui e agora estou perante pessoas adultas, Antigos Alunos do Colégio São João de Brito e Actuais Alunos da Escola da Vida, numa aprendizagem que não termina. É para esses que pretendo falar. Considero, por isso, que pode ser proveitoso apresentar alguns elementos que nos ajudam a reflectir sobre a experiência, que é sempre mestra de vida, seguindo o velho principio: Primum vivere, deinde philosophari (primeiro viver, depois filosofar). Importa filosofar, mas a partir da vida e das questões que ela nos coloca.

Vou usar como cenário desta reflexão a imagem do condutor de automóvel, com aquela atenção descontraída, que simultaneamente tem de aprender a lidar com o trabalhar do motor, com a conversa dos companheiros de viagem, com a estrada a 100 e a 5 metros de distância, com os sinais de trânsito e o fluxo de tráfego, com uma série de variáveis… Nem sempre sabemos o porquê de tudo o que acontece e de tudo o que precisamos, mas temos que lidar sempre com o que vai acontecendo na estrada. Há que manter os olhos bem abertos e seleccionar os dados para configurar a página. A conversa com os meus botões de condutor vai-me tornando consciente de mim mesmo; a conversa com o que acontece e com os botões dos outros vai-me abrindo à realidade e dando capacidade de mudar. Se adormecermos é o desastre! O curioso é que muitas vezes ficamos no sonhar a vida em vez de a viver…

A viagem chama-se amadurecimento. Mais do que a meta da maturidade, interessa procurar compreender o processo do amadurecimento, verificar quais são as respostas às questões que a vida nos apresenta e como se vai mantendo o equilíbrio entre o mundo interior e exterior. A estrada vai mudando sempre, impiedosamente! “O mundo avança sempre, queiramos ou não; de nós depende que avance connosco“, dizia o P. Pedro Arrupe.

Optei então, esta tarde. por escolher cinco palavras que considero indispensáveis para conduzir na estrada da vida e para nos ajudar a pensar o que significa “qualidade de condução” e “qualidade de educação”. Inspirando-me no livro de José Antonio García-monge “Treinta palabras para la madurez”, escolhi cinco e ofereço algumas sugestões, embora com o risco do fio lógico do discurso não ser rectilíneo.

1ª Palavra – Adeus

Cronologicamente, é a primeira palavra que pronuncia o recém nascido, ainda sem saber falar, quando se separa do útero: “adeus” significa distância, separação, no fundo, mudança. Pelo adeus, convertemos o presente em passado e fazemos história na nossa autobiografia. Podemos dizer adeus a pessoas oi a instituições, a úteros ou a prisões, a ideias que nos acompanharam durante alguns quilómetros, a emoções que talvez tenham animado o coração numa determinada idade. Mas o adeus provoca um hiato, uma lacuna. A morte vai acabar por ser o último adeus. Essa morte que tanto se pode pretender esquecer e disfarçar, como pode também ser encarada realisticamente como o último adeus de uma cadeia ininterrupta de adeuses.

O contrário do adeus é o imobilismo, é depender, é agarrar-nos ao instante sem deixar correr a vida. E quanto mais a queremos agarrar, estilo mão cheia de areia, mais ela nos foge. Equivale a perpetuar algo que tinha data marcada e que era caduco em si mesmo. Nós vamo-nos tornando sedentários, com o tempo e mais pesados. Mas há uma parte de nós que precisa de continuar peregrina. E o adeus continua a ser uma palavra chave que levamos na mochila existencial da viagem. Podemos ser sedentários na actuação, mas temos que aprender a ser peregrinos de uma procura pessoal e social que passa pela mudança e pelo adeus.

Para não perder o comboio da vida, temos que ser espectadores que vêem fugir a paisagem pela janela e deixar o cais como saudade de pedra, com esperança no futuro. É difícil dizer adeus. Mas se o não aprendemos, diminuímos a nossa estatura humana e impedimos o crescimento integral. Dizer adeus produz insegurança e lembra-nos que somos finitos. Dizer adeus à segurança é abrir-nos à vida e aceitar o risco se ser pessoa!

2ª palavra – Olá

Dizer olá é a capacidade de acolher os acontecimentos. Olá é a possibilidade de mudança, para continuarmos a ser de modo diferente. Se queremos ser fiéis a nós próprios, temos que dizer olá a novas realidades.

Quando é que nos tornamos velhos? Quando já não sentimos a vida como algo que se estreia constantemente, quando se vive por mera rotina e repetição de contactos adquiridos. Quando decidir se abro ou não a porta. Viktor Frankl, psicólogo austríaco que esteve preso em Auschwitz, afirmava: “direi olá em todas as circunstâncias, aconteça o que acontecer“. Esta frase escrita em Auschwitz tem uma força enorme.

Olá é também um convite ao diálogo com a realidade, porque a realidade chama constantemente o meu nome. Posso negar-me à realidade e inventar um mundo para me sentir bem dentro dele, ou então posso abrir-me à realidade e aprender a dizer olá. Todo o olá abre uma nova página na história, constitui um desafio, inicia um projecto. Dizer olá é crer que algo de novo pode acontecer, ou que alguém pode entrar na minha vida. É saber-me vivo! Há pessoas que quando estão zangadas resolvem não dizer olá a ninguém. Mas ao negar um olá, estamos a negar muito mais que um cumprimento. Estamos a negar a capacidade de nos conhecermos e de conhecer o outro, de perdoar e ser perdoado, de compreender melhor a realidade.

Há, felizmente, pessoas que têm sempre o olá nos lábios e no coração, como expressão de disponibilidade. Se esse olá vem acompanhado de um gesto de abertura e de escuta, a ponte torna-se transitável.

3ª Palavra – Obrigado

Para além da cortesia convencional, obrigado é o reconhecimento agradecido de um gesto gratuito de amor. Dizer obrigado supõe reconhecer que existe uma realidade para além do que está estipulado ou contratado: o gratuito. Dá que pensar se ensinarmos as crianças a dizer obrigado, ao mesmo tempo e, simultaneamente, fabricarmos um mundo onde mal tem lugar essa palavra. Um mundo tão programado que funciona por tecnologia, poder, obrigação, dinheiro e talvez também por medo.

Um mundo medíocre, onde parece descabida a palavra obrigado. Agradecer é reconhecer o outro livre, capaz de generosidade e de amor, capaz de gestos escolhidos e não devidos. A palavra obrigado é sempre um presente que não se procura, que se recebe com surpresa, que só é autêntico quando sai de um coração agradecido. A palavra obrigado abre-nos a um mundo humano que nos surpreende, que comove, que alegra, um mundo que não é simplesmente feito de coisas que funcionam, um mundo que se vive. O dever e obrigação sozinhos levam-nos mais a funcionar que a viver. A gratidão quebra este círculo: é uma espécie de moldura que faz com que o dever se torne humano, querido e oferecido.

4ª Palavra – Trabalho

Lembremos a frase de Freud: “das leben ist arbeiten und lieben”. Trabalhar é criar, produzir, mas também conviver responsavelmente com outras pessoas na transformação do mundo e na tarefa de sustentar a vida. Trabalho é a resposta adulta ao desafio da existência, é transformar algo fazendo-me alguém. A palavra trabalho diz mais que a mera ocupação do tempo. Significa dar o seu contributo para a transformação do mundo, deixar rasto na história.

Vivemos num mundo em que ter trabalho já é uma sorte. O exagero de trabalho de alguns e a falta de trabalho de outros, com o fantasma do desemprego, podem perverter a palavra trabalho. Trabalho pode servir para encobrir tempos tirados à família, ao crescimento pessoal, ao desenvolvimento integral da pessoa.

A criança não deve trabalhar. Seria atribuir à criança uma palavra demasiado pesada. A criança deve aprender a viver do trabalho de outros, para chegar um dia a trabalhar para sustento de outros. Trabalhar para uns significa fatalidade, para outros oportunidade, para outros missão. É velha a história das três respostas à mesma pergunta feita aos três pedreiros “que sentido tem o teu trabalho?”. O primeiro queixa-se do castigo que lhe tinha caído sobre os ombros. O segundo cita a clássica frase bíblica: “comerás o pão com o suor do teu rosto” Gen 3:19. O terceiro responde “estou a construir uma catedral”. O trabalho é materialmente o mesmo para os três, mas a interpretação, o sentido é muito diferente, porque diferentes são as motivações.

5ª Palavra – Escolher

Escolher e conduzir a própria vida é o acto mais consciente e livre, fundamento da identidade adulta. Escolhendo, tornamo-nos e fazemo-nos pessoas. Quem decide a minha vida? Somos condicionados por tanta coisa: a publicidade, a empresa, as instituições, a religião, os papéis sociais que desempenhamos, a família, etc. Podemos diluir-nos numa sociedade, pensando pela cabeça de outros, ou podemos aprender a arte de decidir e ter um pensar próprio, legítimo e livre. Escolher é correr riscos. Ao decidir não se hipoteca a liberdade; pelo contrário, ao exercitar a liberdade, tornamo-nos mais livres. A pessoa humana é um centro autónomo de gestão dos próprios relacionamentos, pelas decisões que vai tomando.

Ao escolher algo, estou a escolher ser alguém. Ao tomar decisões personalizo-me, sem me deixar paralisar pelo medo de errar. Muitas vezes para nos protegermos, dizemos “eu tenho que“, “eu devo” … em vez de dizer, “eu quero”, “eu escolho“. Não que esteja mal apelar responsavelmente ao que devo fazer, mas o caminho do amadurecimento pessoal vai no sentido do “eu prefiro e quero” . Se não escolho viver acabo por ser vivido e ter-me-ei que resignar a sobreviver.
Escolher a minha vida é torná-la habitável. A minha vida é a linguagem que pode exprimir aquilo que sou verdadeiramente.
Posso escolher entre ser homem ou mulher habitado por mim e aberto a outros, caso contrário tornar-me-ei uma pessoa desabitada.

Escolher a vida é difícil. Supõe comunicação e solidão, aprender a dizer “sim” e “não”. O perfeccionismo é incapacidade de escolher. Hoje temos muitas possibilidades de escolha, o que tanto nos pode dificultar a opção, como pode ser ocasião de crescer em liberdade.

Epílogo

Apresentei cinco palavras para a obra da educação, que é bem mais vasta do que parece e terá de abranger toda a pessoa e tudo na pessoa. O objectivo é chegar à síntese, que no dizer de PlatãoA maturidade é uma ave que levanta voo ao cair da tarde“. Embora tenhamos todos mais trabalho, parece que a escola está a chegar à conclusão que sozinha não consegue responder e satisfazer as necessidades educativas da vida humana. Em tempos, o ideal era evitar interferências e ruídos, de modo a executar na escola a sinfonia perfeita sob a batuta do maestro. A escola viveu (sobreviveu?) durante muito tempo longe da família, da comunidade, das organizações sociais, das Associações de Antigos Alunos e de Pais, do voluntariado, das questões da saúde e do ambiente.

Creio que podemos concluir que nenhum problema se pode solucionar apenas no interior da escola, apenas no interior da família, apenas no grupo de amigos. Temos que renovar alianças, a partir do cenário onde se desenvolve, de facto, a vida da criança/adolescente, porque este tem de ser o centro de gravidade da educação. Temos que procurar integrar e ajudar a tecer a corda única da vida, pela integração contínua dos vários fios que a constituem. A educação terá sempre caminho a fazer no sentido de oferecer motivos para viver, de ajudar o indivíduo a tornar-se consciente das próprias raízes, de activar processos de integração, de desenvolver o sentido crítico. A escola é um meio. Se se converte num fim, acaba por se negar a si mesma.

Temos que tentar aproximar o educativo e o social, o social e o económico, a saúde e o ambiente, produzindo sinergias educativas. É necessário descobrir a missão educativa de outros espaços, não estritamente escolares. Ninguém nem nenhuma instituição pode empreender esta tarefa isoladamente. Temos muito caminho a fazer no sentido de aprender a tratar as questões verdadeiramente humanas de modo interdisciplinar ou pluridisciplinar, construindo redes, dando voltas na teia de um novo tecido social, atendendo ao grupo, que suporta e é suportado pelo trabalho individual. Se o espaço escolar se enquista, a tendência é continuar ao longo da vida este tique apanhado em tenra idade. A educação mais ligada à vida será um grande desafio no século XXI.

Precisamos urgentemente de comunidades que educam!

Alberto de Brito, sj